(...)
"Olhemos para uma daquelas estátuas de menina que os artistas do século VI a.C. esculpiam...", começa por dizer Umberto Eco, na sua "História da Beleza". "Os pitagóricos teriam explicado que a rapariguinha era bela porque nela um justo equilíbrio dos humores produzia um colorido agradável e porque os seus membros estavam numa relação certa e harmónica, dado que eram regulados pela mesma lei que regia a distâncias entre as esferas planetárias. O artista do século VI estava obrigado a realizar aquela beleza imponderável de que falavam os poetas e que ele próprio teria captado numa manhã de primavera, observando o rosto da rapariga amada, mas obrigado a ter de a realizar na pedra e concretizar a imagem da rapariga numa forma."
Avançando até à Renascença, assiste-se a uma nova visão e utilização do corpo, apoiada na redescoberta e recriação da Antiguidade Clássica. Entre o fim do século XIII e o princípio do XVII, o corpo passa a ser algo que se deve enfeitar com arte e de modo a ver-se bem. Os ourives criam peças para ostentar pelo corpo, artigos concebidos "segundo cânones de harmonia, proporção e decoro", como refere o professor italiano licenciado em Estética, lembrando que "o Renascimento é um período de empreendimento e atividade para a mulher, que na vida de corte dita leis na moda, se adequa ao fausto imperante, mas não se esquece de cultivar a sua mente, participa ativamente nas belas-artes, tem capacidades discursivas, filosóficas e polémicas".
"Mais tarde, o corpo da mulher, que se mostra publicamente, será contrabalançado pela expressão privada, intensa e quase egoísta dos rostos, de não fácil decifração psicológica e, por vezes, intencionalmente misteriosa: eis a Vénus de Urbino de Ticiano ou a mulher da Tempestade de Giorgione. A Vénus de Velázquez aparece-nos de costas, enquanto só lhe percebemos o rosto por reflexo, no espelho.
Artificialidade do espaço e caráter fugidio da beleza feminina encontrar-se-ão ainda, nos séculos seguintes, nas mulheres de Fragonard, em que o caráter onírico da beleza preludia já a extrema liberdade da pintura moderna: se não há vínculos objetivos para a representação da beleza, porque não colocar uma bela nudez numa merenda burguesa sobre a relva?"
Quanto ao corpo do homem, por esta época, o entendimento é diferente. Quando eles são retratados, não interessam as regras da proporção e da simetria, sim personificar o poder ou, talvez, dar o grito do Ipiranga em relação aos preceitos clássicos. "As formas do corpo não escondem a força nem os efeitos do prazer: o homem de poder, gordo e entroncado, quando não musculoso, tem e ostenta os sinais do poder que exerce. Certamente não são esbeltos Ludovico, o Mouro, nem Alexandre Bórgia (que goza da fama de objeto de desejo das mulheres do seu tempo), nem Lourenço, o Magnífico, nem Henrique VIII. E, se Francisco I de França, no retrato de Jean Clouet, dissimula debaixo de amplas vestes a sua esbelteza démodée, a sua amante Ferronière, retratada por Leonardo, enriquece a galeria de olhares femininos indecifráveis e fugidios", diz Umberto Eco.
Seja como for, para a mulher e para o homem, o ideal de beleza foi mudando e... repetindo-se. A dada altura, regressámos aos tempos em que gordura volta a ser formosura e as mulheres se querem pequenas como a sardinha.
Foi no século VIII e, na centúria de 20, depois da morte dos espartilhos e das cinturas finíssimas, quando o corpo feminino se libertou, literalmente. Não chegou às formas do paleolítico, mas andou perto...
Só que, entretanto, surgiu a inglesa Lesley Hornby, mais conhecida por Twiggy, a primeira supermodelo do mundo, que impôs, no final dos anos 1960, o corpo franzino, o cabelo curto e olhos rasgados encimados por longas sobrancelhas, transmitindo um ar andrógino.
Foi no século VIII e, na centúria de 20, depois da morte dos espartilhos e das cinturas finíssimas, quando o corpo feminino se libertou, literalmente. Não chegou às formas do paleolítico, mas andou perto...
Só que, entretanto, surgiu a inglesa Lesley Hornby, mais conhecida por Twiggy, a primeira supermodelo do mundo, que impôs, no final dos anos 1960, o corpo franzino, o cabelo curto e olhos rasgados encimados por longas sobrancelhas, transmitindo um ar andrógino.
A partir daí, os corpos foram-se querendo, por força dos desfiles de moda, cada vez mais finos, esquálidos, mesmo. Tanto de mulheres como de homens. O primeiro sinal foi dado pela Calvin Klein, nos anos 1990, quando fotografou a modelo Kate Moss, seminua, macérrima, com ar de viciada em drogas duras. E todos começaram a aparecer muito magros, olheirentos, num estilo de "heroinómanos chiques". De tal forma se regressou ao fino, mas acrescentando-lhe o ar de doente terminal, que alguns países resolveram impedir a disseminação da ideia de que magreza é beleza.
Em 2006, o governo regional de Madrid proibiu desfiles de looks anoréticos e a polémica resolução foi bem aceite pela Cibele, uma das mais importantes semanas da moda europeias que decorre anualmente na capital espanhola. Perto de 40 por cento das manequins foram vetadas: todas as que apresentavam um aspeto doentio e um índice de massa corporal abaixo dos 18.
Em 2006, o governo regional de Madrid proibiu desfiles de looks anoréticos e a polémica resolução foi bem aceite pela Cibele, uma das mais importantes semanas da moda europeias que decorre anualmente na capital espanhola. Perto de 40 por cento das manequins foram vetadas: todas as que apresentavam um aspeto doentio e um índice de massa corporal abaixo dos 18.
"Estamos magras mas não doentes", queixaram-se as excluídas, estranhando o comportamento espanhol (em França e em Inglaterra houve apelos no mesmo sentido, mas não se chegou a medidas drásticas). As modelos poderão ter alguma razão, face às exigências do outro lado do mundo.
Ainda no passado mês de outubro, a Ralph Lauren despediu uma das suas modelos com o argumento de que era muito gorda, isto depois de abusar do Photoshop (ver post no esqueciaana) para lhe adelgaçar o corpo nas fotos das suas campanhas publicitárias e com tanto exagero que a modelo aparecia com a cabeça muito mais larga do que o corpo. Ora, Filippa Hamilton, de 23 anos, que trabalhava para a marca desde 2002, pesava 54 quilos e media 1,77 de altura, com estes números não poderia desfilar em Espanha e, segundo a Organização Mundial de Saúde, o seu peso ideal deveria ser de 70,9 kg...
(a modelo com tratamento de imagem e a modelo quando despedida).
De facto, o mundo parece esquizofrénico. Nos Estados Unidos, onde os corpos do cidadão comum são cada vez mais volumosos, a marca que redefiniu o "estilo americano" quer cabides. Na Alemanha, a revista feminina de maior tiragem (Brigitte post no esqueciaana)decidiu substituir as fotografias de corpos de manequins moldados por programas informáticos por "mulheres reais". A causa? A diretora da publicação, Andreas Lebert, disse estar farta de engordar corpos com Photoshop para que as raparigas parecessem pessoas normais. "O peso médio das modelos é cerca de 23% menor do que a maioria das mulheres", disse, adiantando que também tinha recebido muitas queixas de leitoras incapazes de se identificarem com as modelos das capas.
(páginas da revista Brigitte; a 'modelo' trabalha numa loja)
O corpo, independentemente da beleza, é o património natural do ser humano. "As sociedades humanas agem sobre o corpo através de regras de etiquetas, sanções e proibições, de prémios e castigos, de leis e penas e tudo isso se reflete na forma de andar, sentar, dormir, amar, de se alimentar, etc. Nesse sentido, o corpo é uma encruzilhada de acontecimentos culturais e sociais, animais e psíquicos, uma confluência de fenómenos, uma rede de emoções, uma teia de movimentos, um repertório inesgotável de gestos", dizia, no século XIX, o pensador brasileiro José Carlos Rodrigues.
(fotografia de Stephen Chernin nos bastidores da Semana da Moda de NY 2011)
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