Quantos likes essa anorexia merece? Duas garotas lindas e inteligentes definham enquanto seus seguidores elogiam sua magreza. Esta semana, uma morreu. Amanda Melito, que acordou a tempo, conta sua história.
Postado em 23 ago 2013por : Marcelo Zorzanelli no diário do Centro do Mundo (Brasil)
Na última terça-feira, dia 20, uma jovem gaúcha com milhares de fãs nas redes sociais, autora de comentários espirituosos no Twitter e com centenas de fotos que sublinhavam sua beleza postadas na rede, morreu. Ela atendia pela arroba @megan_foques e chamava-se Daiane Dornelles. Amigos e conhecidos apontam como causa da morte complicações de uma disfunção alimentar que pouco a pouco alcança níveis epidêmicos: a anorexia nervosa.
Outra tuiteira de sucesso, @amandamelito (ela já se apresentou como @cherguevara, mas desistiu do trocadilho), resolveu não calar. Elas não se conheciam. Mas Amanda experimentou o inferno do qual Daiane não foi resgatada. A pedido do Diário, ela escreveu um depoimento.
Bons tempos em que pegar o jornal sobre o capacho consistia na primeira fonte de informação do dia. Hoje, nossas manhãs se transformaram num ritual em que nos inteiramos da vida alheia: em que restaurante as pessoas andam comendo, em que balada cara entram no cheque especial, em que “look” as gatas andam se oferecendo. E nos mostrando, claro. Gastamos os primeiros minutos do dia apegados ao que muitos pregamos ser irrelevante: a incessável busca da aprovação da nossa audiência particular. Eu falei “primeiros minutos do dia”? Começa cedo e vai o dia inteiro, a gente sabe bem.
Vemos pessoas comuns exibindo suas silhuetas e assumindo notoriedade suficiente para se tornarem padrões de beleza entre seus fãs. É curioso, mas acompanhamos famosos nos seus dias de anônimos – e anônimos se transformando celebridades. Participamos da rotina das celebridades e dos momentos de glória dos aspirantes. “Podemos ser um deles” – será que é isso que secretamente pensamos?
Até meus 14 anos, mesmo estando naquela fase conturbada de pré-adolescência, nunca tive muita preocupação com a minha aparência. Na época, já tinha a altura que permanece intacta até hoje: 1,58 m. Meu peso era compatível com a minha estatura, e oscilava entre 48kg – 50kg. Era vaidosa, lógico, adorava me embonecar, mas satisfeita com o meu físico. Minha família se encaixava perfeitamente no modelo de lar ideal: pais com um casamento estável, patriarca com carreira em ascensão, filhos saudáveis e domáveis.
Mas, subitamente, as coisas começaram a degringolar. Meus pais tiveram problemas conjugais e eu, caçula, senti aquela redoma, até então blindada, espatifar. Desolada, consumida por uma tristeza profunda, aos poucos fui parando de comer. Não tinha nenhuma meta, fora a inconsciente de desviar a atenção do divórcio iminente deles. Comecei a emagrecer exponencialmente e consegui “reter” o olhar da minha família. E, pouco a pouco, passei a sustentar um objetivo palpável. Esquálida, pesando 38kg, me olhava no espelho e me via enorme. Usava roupas largas e ainda assim me queixava que elas acentuavam meu “sobrepeso”.
Já havia iniciado um tratamento psiquiátrico, mas mesmo assim não respondia as investidas médicas. Até que um dia, no banho, consegui por uma fração de segundo me enxergar. Entrei em pânico e resolvi voltar a comer. Passei muito mal no começo, meu organismo não aceitava quase nada do que eu ingeria. Mas gradativamente fui me recuperando, e consegui me manter estável pelos próximos 10 anos.
De 1997 pra cá, tive duas recaídas: a primeira foi em 2008, quando já morava sozinha. Voltei a pesar 38kg, precisei ser afastada do trabalho, mas consegui reagir e reverter o quadro relativamente rápido. A segunda, e mais violenta, começou em 2011.
Em ambas reincidências, eu havia sofrido um desgaste emocional pesado, estava com o coração em frangalhos. Veja, não estou atribuindo a responsabilidade de ter adoecido a nada e a ninguém. Não existem culpados. Existem situações e condições que te deixam mais vulnerável. Em menos de 1 ano, perdi 20% do meu peso – uma porcentagem expressiva para quem tem a minha altura.
Minha família, meus amigos, meu namorado, meus colegas de trabalho se mobilizaram para me ajudar, mas eu negava e era extremamente ríspida com quem se aproximava de mim para oferecer auxílio. Eu tentava os confortar dizendo que estava tudo bem, porque realmente achava que estava.
E esse é o grande perigo da anorexia nervosa, a única doença de ordem psiquiátrica que pode levar à morte: ela age de forma silenciosa; você não tem sintomas concretos que te alertam que algo está errado.
E aqui entra a parte sinistra da coisa. A coisa que, suspeito, matou a bela Daiane. Mesmo que apresentasse todos os sintomas, eu contava com o apoio de seguidores no Instagram que alimentavam (sem ironia) o resultado da minha privação.
Nunca fiz apologia à doença, até porque demorei muito para admitir que tinha um distúrbio, mas continuava publicando minhas famigeradas fotos de elevador. E, mesmo em um estado deplorável, recebia elogios que me davam forças para continuar enfraquecendo.
Bem, fui novamente afastada do trabalho e submetida a um tratamento intensivo, com respaldo semanal de nutricionista, psicólogo e psiquiatra. Dessa vez, a doença estava tão arraigada em mim que meu quadro apresentava sérios riscos clínicos. Pesando 30kg e correndo risco de morte, fui internada involuntariamente em 31 de agosto de 2012 no Ecal – Enfermaria de Comportamento Alimentar – centro do Hospital das Clínicas especializado em transtornos alimentares. Por 3 meses, convivi com meninas que tinham problemas de distorção de imagem, cada qual com sua peculiaridade.
Quantas noites chorando baixinho e pedindo paciência. Quantos sonos interrompidos por pesadelos. Quantas manhãs letárgicas experimentando os olhares mais tristes que eu já tive. Até que tudo que estava descarrilado foi entrando nos eixos. Quase um ano se passou, e me mantenho forte. Passei a canalizar toda a obstinação que era usada em prol de um biotipo que eu julgava ideal para a manutenção da minha saúde.
Graças a essa intervenção, aprendi a comer. Aprendi a encarar como um elogio a beleza “exótica” que me endereçavam e até a me orgulhar das pernocas grossas que eu sempre tive.
A máxima de qualquer tratamento deste tipo: um dia de cada vez. Nunca estaremos livres. Eu tive ajuda. Outras garotas não têm.
O que elas têm são centenas, milhares de polegares estendidos positivamente em sua direção dizendo apenas umas coisa: continua assim. Você está linda.